Por Douglas Pinheiro Bezerra
Que Big Brother que
nada! Existem outros "reality shows" cá pelas terras
paraibanas que forçariam os bispos da CNBB a escolher entre o exorcismo e a
excomunhão dos organismos midiáticos. As atrações não ocorrem em horário nobre
mas, nem por isso, deixam de agaranhar graciosas fatias do bolo do lucro
propagandístico, fermentado pelos altos índices de audiência. Em muitos dos lares,
em repartições estatais, nos mercados públicos, há sempre uma televisão
sintonizada em algum dos programas de jornalismo policial que passam imagens de
cadáveres e familiares chorando (uns mais dramaticamente que outros) em pleno
horário do almoço. Se tornou um ambiente social muito comum: há até espaço para
risadas. Os presos - em grande parte, menores de idade - já se acostumaram com
a ideia de um dia poderem "brilhar" sob a luz de uma câmera, terem
seus poucos segundos de "fama", admitirem que são "boys
doidos" mesmo e, de resto, ainda mandarem um abraço para o apresentador do
programa ou dançarem com o repórter. O crime, mais do que nunca, virou um
espetáculo: filmado, satirizado, mercantilizado.
Há, porém, algo que
me assusta mais do que essas estruturas de lógica espoliadora e lucrativa: o
discurso; com ele, suas consequências sociais. Reações, falas e
"ensinamentos" semelhantes de alguns "jornalistas" reforçam
o tom de que não há muito o que se discutir, ou melhor, de que não se quer
discutir muito. E também não há nada de novo: assassinos, ladrões, drogados,
menores infratores; cada um previamente valorado, cada qual com sentença social
e destino certos ("cadeia ou caixão"). Assim segue a dinâmica das
saídas imediatistas da vida: prega-se que repressão se cura com mais repressão,
violência com mais violência, seja ela sutil, seja escancarada, no estilo
"descer uma cambada de pau", "mostrar quem é que manda",
"fazer que nem na China - meter bala e ainda cobrar da família". Mas
questionar esse pragmatismo não parece ser interessante, não tem a mesma
eficácia social e pode decepcionar o telespectador. Pra quê refletir adiante
disso? Valores? Só os nossos! Dignidade? Só pra quem merece! Cada um tem a sua
chance na vida, se desperdiçou, sem chances! E esses direitos humanos? Não vejo
ninguém defender os direitos humanos da vítima!
O jornalismo
policial paraibano é um empreendimento maniqueísta de sucesso. O
"bem" e o "mal" estão ali quase que diariamente, nas
imagens, nas falas, no discurso ao fim de cada matéria. A audiência dá a
legitimidade da qual os apresentadores e repórteres precisam para normatizar a
sociedade e dizer o que é certo e errado, de quem é o erro e como se consertam
as coisas: há mais juízes e legisladores por aí do que se imagina. O artifício
do "direito de defesa" do criminoso diante das câmeras é quase uma
piada e, em algumas oportunidades, chega a sê-lo, literalmente: por que dar voz
a quem já errou, a quem a sociedade já condenou? O comentário do jornalista
referenda a ideia de bem social; quando o bandido fala, ele é o mal em pessoa,
"foi o capeta quem seduziu". Não raras vezes, o discurso moral,
descaradamente, se encontra com o político e o religioso, uma orgia discursiva,
um pouco de cada para agradar a gregos e troianos, do indivíduo mais
intolerante ao bispo mais conservador. Mas, do ponto de vista de uma
estrutura democrática, esse tipo de discurso consegue encontrar uma base ainda
mais desconsertante. Quando o apresentador se diz "a voz do povo" ou
"o defensor da sociedade", há que se questionar "quem é o
povo" ou, ainda, se "os criminosos não fazem parte da
sociedade".
Acredito que aí
esteja o ponto central de atrito entre a defesa dos Direitos Humanos e a
ideologia que sustenta os programas televisivos de cunho policial. Enquanto
esta tende a um processo de autolegitimação desencadeado pela anuência
massificada do público telespectador, o que lhe dá "autoridade" para
segregar os sujeitos merecedores dos sujeitos errantes, os Direitos Humanos
jogam um balde de água fria nesse apartheid discursivo,
reforçando o núcleo estático do valor e dignidade de cada pessoa.
"Povo" e "sociedade", nessa lógica midiática, passam a ser
nada mais do que os indivíduos que se identificam com o discurso desses
jornalistas; inimigos da sociedade serão todos os outros, inclusive os
"defensores de bandidos" que põem em risco a integridade dessa
"sociedade".
Nesses programas se
está longe de debater questões estruturais com seriedade. Esporadicamente se
aborda o aspecto institucional das políticas de segurança pública, se faz
pressão política por mudanças etc., mas nada que impeça tais jornalistas que
retomarem a funcionalidade da velha receita de seduzir pelo discurso dos
imediatismos, das atitudes reacionárias e da criminalização massiva, que é o
que parece interessar aos telespectadores. Arrisco dizer que é um ciclo
vicioso. Falta compreender que a segurança de uma sociedade (por inteiro) vai
muito além da repressão e que a exclusão dos seres errantes não é um problema
só deles; pelo contrário, é algo que interessa a todos nós, aos que querem
impedir a propagação da criminalidade e a desestruturação das bases sociais de
um país. Se o Estado da Paraíba apresentou índices assustadoramente crescentes
de violência nos últimos anos, todos, criminosos ou não, carregamos uma
considerável parcela de culpa que se conecta à forma como conduzimos nossas
instituições políticas e os projetos de efetivação dos direitos
constitucionais.
Todas as imagens
que nos são transmitidas e toda a “carnavalização” simbólica que lhes acompanha
podem parecer inocentes expressões de divertimento e entretenimento. Um dos
maiores problemas da violência moderna, porém, é este: ela também se sustenta
em sutilezas e simbolismos tão nocivos e potencialmente agressivos quanto os
gestos de brutalidade física.
[Douglas é graduando em Direito, estagiário do Centro de Referência em
Direitos Humanos da UFPB e editordo Jornal A Margem]